Memórias esquecidas, ou, simplesmente, deixadas de lado através do tempo. Quantos povos originários foram ‘engolidos’ pelo desenvolvimento da civilização? Difícil mensurar.
É certo que, hoje, há uma corrente preservacionista que busca desvendar esta história e a compreensão dela para o nosso dia a dia. Mas ainda há muito o que se fazer. Na região dos Campos Gerais, no município de Ortigueira, a Aldeia Indígena de Queimadas vem buscando dar voz à sua própria história. “A cultura indígena possui uma importância fundamental na construção da identidade nacional brasileira”, esclarece a cacique Kysâ, Luana Aparecida Correa, a primeira a ocupar o cargo em todo o Paraná.
Leia também: Museu Parque Histórico de Carambeí organiza atividades de Carnaval
Em Queimadas, os indígenas Kaingang buscam fazer o resgate de sua cultura, e ainda compartilhar a sua história. E quanta história. Há indícios da presença destes povos no Sul do Brasil há cerca de 2,5 mil anos. Atualmente, a Aldeia conta com 750 moradores. Em todo o Brasil, os povos Kaingangs representam a 3ª maior comunidade indígena, com mais de 45 mil pessoas, de acordo com o IBGE. “Estamos ensinando os nossos jovens a conhecer mais a nossa cultura, que já estava sendo esquecida”, relata a cacique.
A dualidade de Kairu e Kaime – as metades clânicas que representam todos os seres da Aldeia -, os rituais, a linguagem, os cânticos, as danças e a culinária. Tudo isso faz parte do projeto de resgate de Queimadas. A linguagem, as crianças conhecem desde os primeiros anos de vida. Além de falar em suas casas, há a escola local, Crispim Gy Mû, que ensina as duas línguas. Lá, a professora Zinha Garigsanh é a responsável. As demais tradições é que estão contando com novos esforços para serem resgatadas, mantidas e repassadas para as novas gerações.
Dentista, e um dos líderes da Aldeia, o Kaingang Renato Pereira, está revitalizando as tradições com um Grupo de Danças Culturais, o Nên Pûr. “Antigamente estes rituais eram muito utilizados pelos nossos antepassados”, conta. Além de manter a tradição com apresentações, o grupo visa mostrar a importância e o significado delas. Frequentemente são realizadas visitas aos indígenas mais velhos para que estes passem suas experiências aos mais jovens.
Esta ‘onda’ de resgate cultural motivou a realização de uma festividade recheada de história e significado para a Aldeia. No final do último ano, a pequena Ariz To Mrig Aparício, a Totô, ganhou o seu batizado nos moldes de seus antepassados. Uma cerimônia para apresentar a indígena à comunidade e também àqueles que já se foram. O ritual original acontecia em uma fonte, com fogo, danças e rezas cânticas. Tudo foi repetido, na maneira em que , bisavô da Totô, Jair Krê Santos, ensinou ao neto Elizeu Koku Aparício. “Meu avô queria resgatar esta tradição, e o batismo da Totô foi uma oportunidade”, contou.
O bisavô não pôde ver este sonho realizado, pois devido a uma doença veio a falecer antes do ritual. Mas o neto absorveu todos os aprendizados e deu vida ao batismo indígena. “Foi muito emocionante. Um momento de concentração para apresentar minha filha aos seus antepassados”, relatou. A cacique Luana garante que esta foi a primeira de muitas festividades tradicionais que virão.
A realização do ritual motivou ainda o resgate da alimentação tradicional kaingang. O êmî, bolo azedo à base de milho, ganhou sua versão durante o evento. “São alimentos que eram comuns, mas que, devido à complexidade do preparo, não são feitos usualmente”, aponta Elizeu.
A tradição das cestarias indígenas é outro aspecto que vem sendo mais valorizado na Aldeia. “Juntamos nossas artesãs, e elas realizaram uma exposição dos produtos”, ressalta Renato. Um projeto, a parte, está em andamento, com o resgate dos materiais utilizados com a taquara, traçados e tintas utilizadas para a confecção dos objetos.
O ritual do batismo contou ainda com a participação da Aldeia Indígena Ivaí, localizada no município de Manoel Ribas. Conforme Renato, há um movimento entre as localidades para o resgate cultural. “Há aldeias que já iniciaram eventos esportivos de resgate de tradições. Arco e flecha e arremesso de toco estão entre as modalidades da competição tradicional”, destaca, contando ainda que Queimadas pretende realizar este ano o evento.
Museu de Telêmaco Borba busca dar visibilidade à cultura Kaingang
Instituição apoiadora do movimento de resgate cultural dos Povos Kaingang, o Museu Histórico Municipal de Telêmaco Borba vem colaborando para reviver a história. “Sabemos da importância destes povos para a nossa construção, e queremos resguardar as tradições”, conta a coordenadora Adriana Andrade.
Adriana já realizou diversos eventos com a presença do grupo de dança indígena da Aldeia de Queimadas. “É uma riqueza muito grande contarmos com esta cultura tão próxima”, ressalta. A partir desta proximidade, a coordenadora ‘vestiu a camisa’ e vem apoiando as ações de resgate cultural da Aldeia, inclusive o batismo indígena realizado no último ano.
Cacique mulher. O Paraná tem!
Em 2023, a Aldeia de Queimadas elegeu a sua primeira cacique mulher da história. Feito histórico também no Estado, que ainda não contava com uma figura feminina no cargo. Luana iniciou como chefe entre as lideranças femininas. “A partir daí assumi como vice-cacique, e hoje estou como cacique”, exulta, destacando que ‘abriu portas’ para outras mulheres que pretendem atuar como líderes.
Conforme Luana, somente homens é que ocupavam o cargo, mas, vencendo preconceitos, se candidatou e foi eleita. “É uma honra trabalhar para a minha comunidade e buscar melhorias para o nosso povo, principalmente para não deixar acabar nossa cultura”, avalia.
No Brasil, a primeira cacique mulher, a ‘Pequena’ é do povo Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza. Ela assumiu o cargo em 1995 e deixou um legado na Aldeia e no país, com destaque para a delimitação da terra de seu povo.
A dualidade de Kairu e Kaimê
O mito de origem da cultura Kaingang traz a cultura dualista da comunidade, percebida até os dias atuais. Conforme publicação de Telêmaco Borba, datada de 1872, após um dilúvio, os irmãos gêmeos Kairu e Kaimê deixaram a montanha de Crinjijimbé. Cada um deles seguiu um caminho, para lados opostos da montanha, e criaram duas grandes famílias, além de tudo o que há na terra.
Todos os integrantes das comunidades indígenas Kaingangs são descendentes dos irmãos. Aqueles que são Kairu só podem se casar com os que são Kaimê. “São metades que se complementam”, explica o assistente social do IDR Paraná, Deivid Ricardo Carolli. O profissional atua nas comunidades indígenas do Estado por meio do programa Ater Indígenas. Cada uma das metades traz consigo as características dos gêmeos, a força e a serenidade, por exemplo.
A tradição pode ser vista ainda nas pinturas corporais da comunidade e nos grafismos desenhados nas cestarias indígenas. As marcas compridas só podem ser utilizadas pelo Kaimê, e as redondas somente pelos Kairu.